terça-feira, 20 de abril de 2021

Resenha: O erro de Descarte


 Ficha técnica:

O Erro de Descartes – Emoção, Razão e o Cérebro Humano.

Autor: Antônio R. Damásio

Tradução: Dora Vicente e Georgina Segurado
Edição Econômica, 264 pp. 

Companhia das Letras, 2012.

 

Ultimamente, vários estudos têm abordado o “velho” tema das emoções e a sua importância no controle do comportamento, incluindo as chamadas funções mentais superiores como a percepção, aprendizagem, memória e inteligência. Para aqueles, como nós, que trabalham com emoção e cognição é gratificante constatar que o debate sobre o tema atravessou a barreira dos laboratórios e da academia e passou a fazer parte do cotidiano de um público mais geral. 

“O Erro de Descartes” de António Damásio é um livro elegante, de uma leitura arrebatedora, que ilustra o fato de que as emoções são indispensáveis para a nossa vida racional. São as emoções que nos fazem únicos, é o nosso comportamento emocional que nos diferencia uns dos outros. A natureza e a extensão do nosso repertório de respostas emocionais não depende exclusivamente do nosso cérebro, mas da sua interação com o corpo, e das nossas próprias percepções do corpo. Como diz Damásio, o corpo representado no cérebro constitui-se num quadro de referência indispensável para os processos neurais que nós experienciamos como sendo a mente.
Neste ponto, o autor aponta alguns “erros” de Descartes - a separação entre a mente e o corpo. O que se passa no cérebro são operações mentais; isto influencia o corpo e vice-versa. Entende-se, portanto, o título do livro. A mente é fruto do cérebro contrapondo o dualismo cartesiano no qual a alma (razão pura) é independente do corpo e das emoções, e não ocupa lugar no espaço. Além disso, o método de estudo mecanicista proposto por Descartes é questionado. Damásio defende uma fusão do estudo neurobiológico com a investigação psicológica numa abordagem integrativa das emoções e da razão. Pesquisas subdividindo o fenômeno nas menores partes possíveis a fim de se compreender cada uma em separado, como propôs Descartes no seu livro “Discurso do Método”, não nos levariam a um entendimento completo e amplo da tomada de decisões ou de qualquer outro fenômeno. 

Descartes quando fala da razão a separa completamente dos sentimentos. Ele é o responsável pela popularização do conceito que temos hoje em dia que razão e emoção são coisas completamente distintas e que “misturá-las” é receita para a confusão e o fracasso. Quantas vezes já não ouvimos que devemos tomar nossas decisões de forma racional, e que devemos manter nossos sentimentos afastados de nossos processos decisórios?

Neste livro, Antônio R. Damásio propõe que, na realidade, a falta de emoção é prejudicial ao processo de decisão e, mais importante, a emoção é peça fundamental nesse processo. 

Para isso ele parte de casos de pessoas com lesões em áreas do cérebro responsáveis por emoções para mostrar que apesar de essas pessoas serem normais no que diz respeito à suas capacidades intelectuais e cognitivas, o fato de não “sentirem emoção” prejudica sua capacidade de tomar decisões de forma racional. 

É uma teoria que pode mudar radicalmente como vemos e lidamos com comportamentos violentos, por exemplo, e abre todo um campo de pesquisa para neurobiólogos do mundo todo. 

É um livro lento de ser ler. Na Parte Um ele narra os casos clínicos de pessoas que após acidentes que prejudicaram partes do cérebro parecem não conseguir tomar decisões racionais no dia a dia, e faz uma detalhada descrição de como funciona essas partes do cérebro.  

Na Parte Dois ele explana a teoria de como os organismos interagem consigo mesmo e com o ambiente ao redor. E mostra como a captação de imagens torna possível o processo de pensamento e dá uma breve explicação de como ocorre o desenvolvimento neural. No fim dessa parte, ele explica sua teoria do marcador-somático, que é o mecanismo (digamos assim) que explica como as emoções estão intimamente ligadas aos processos racionais e a tomada de decisão. 

É  a partir daí que o livro realmente fica interessante.  Não que a Parte Um e os capítulos da Parte Dois não são interessantes e importantes, é só que ele explica tão detalhadamente tudo e demora demais para chegar ao cerne do livro: a relação entre emoção e razão e porque Descartes estava errado. 

Eu, como leitora de divulgação científica, prefiro os livros que vão direto ao ponto, que me passem as informações que eu preciso para entender do que se trata o livro, mas que não pretenda que eu me torne expert nesse assunto. Acho que esse tipo de livro é para pessoas interessadas em ciência, mas que não queiram/podem/tiveram a chance de serem cientistas. Ficar detalhando muito os pré-requisitos torna (novamente, na minha modestíssima opinião) a leitura um pouco maçante.  Tanto que a Parte Três é a parte mais gostosa de ler e a que você lê mais rápido, porque é lá que finalmente você entende o que é que ele queria dizer com aquilo tudo lá atrás. É nessa parte que você entende porque Descartes estava errado. Acredito que uma “introdução” mais sucinta e curta, tornaria o livro todo mais divertido de ler. 

No geral é um bom livro. Te faz pensar fora do lugar comum, fora da ideia de que sentimentos podem te prejudicar vida afora, se você insistir em decidir levar em consideração (de forma consciente) seus sentimentos. Numa leitura mais ampla ajuda a desfazer o preconceito que mulheres são piores agentes porque decidem com a emoção, por exemplo. 

Essa é a função da ciência: fazer-nos pensar além dos nossos horizontes, além do que estamos acostumados, além do que consideramos “correto”. Livros como esse são ferramentas fundamentais para iniciar esse processo de “pensar além”.  E isso, por si só, já é motivo suficiente para lê-lo.

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