IIya Prigogine é cientista de origem russa, nascido em Moscou, em 1917.
Viveu na Bélgica desde os 12 anos. Em 1977, recebeu o Prêmio Nobel de Química. É
autor do livro: "O fim das certezas" (Ed. Unesp e A Nova Aliança (Ed. UnB), entre
outros. Faleceu em 2003, aos 86 anos.
Ilya Prigogine |
Escrevo esta carta na mais completa humildade. Meu trabalho é no domínio
da ciência. Não me da qualquer qualificação especial para falar sobre o futuro
da humanidade. As moléculas obedecem a ''leis". As decisões humanas
dependem das lembranças do passado e das expectativas para o futuro. A
perspectiva sob a qual vejo o problema da transição da cultura da guerra para
uma cultura de paz - para usar a expressão de Federico Mayor - se obscureceu
nos últimos anos, mas continuo otimista.
De qualquer forma, como poderia um
homem da minha geração - nasci em 1917- não ser otimista? Não vimos o fim de
monstros como Hitler e Stalin? Não testemunhamos a miraculosa vitória das
democracias na Segunda Guerra Mundial? No final da guerra, todos nós
acreditávamos que a História recomeçaria do zero, e os acontecimentos
justificaram esse otimismo.
Os marcos da era incluem a fundação da Organização
das Nações Unidas e da Unesco, a proclamação dos direitos do homem e a
descolonização. Em termos mais gerais, houve o reconhecimento das culturas não
européias, do qual derivou uma queda do eurocentrismo e da suposta desigualdade
entre os povos "civilizados e os ''não-civilizados". Houve também uma
redução na distância entre as classes sociais, pelo menos nos países
ocidentais.
Esse progresso foi conquistado sob a ameaça da Guerra Fria. No
momento da queda do Muro de Berlim, começamos a acreditar que enfim seria
realizada a transição da cultura da guerra para a cultura da paz. No entanto a
década que se seguiu não tomou esse rumo. Testemunhamos a persistência, e até
mesmo a ampliação, dos conflitos locais, quer sejam na África, quer nos Bálcãs.
Isso pode ser considerado, ainda, como um resultado da sobrevivência do passado
no presente. No entanto, além da ameaça nuclear sempre presente, novas sombras
apareceram: o progresso tecnológico agora torna possível guerras travadas
premindo botões, semelhantes de alguma forma a um jogo eletrônico.
Sou uma das
pessoas que ajudaram a formular as políticas científicas da União Européia. A
ciência une os povos. Criou uma linguagem universal. Multas outras disciplinas,
como a economia e a ecologia, também requerem cooperação internacional. Fico,
por isso, ainda mais atônito quando percebo que os governos estão tentando
criar um exército europeu como expressão da unidade da Europa. Um exército
contra quem? Onde está o inimigo? Por que esse crescimento constante nos
orçamentos militares, quer na Europa, quer nos Estados Unidos? Cabe às futuras
gerações tomar uma posição sobre isso. Na nossa era, e isso será cada vez mais
verdade no futuro, as coisas estão mudando a uma velocidade jamais vista. Vou
usar um exemplo científico.
Quarenta anos atrás, o número de cientistas
interessados na física de estado sólido e na tecnologia da informação não
passava de umas poucas centenas. Era uma "flutuação", quando
comparado às ciências como um todo. Hoje, essas disciplinas se tornaram tão
importantes que têm consequências decisivas para a história da
humanidade.
Crescimento exponencial foi registrado no número de pesquisadores
envolvidos nesse setor da ciência. E um fenômeno de proporção sem precedentes,
que deixou muito para trás o crescimento do budismo e do cristianismo.
Em
minha mensagem às futuras gerações, gostaria de propor argumentos com o
objetivo de lutar contra os sentimentos de resignação ou impotência. As
recentes ciências da complexidade negam o determinismo; insistem na
criatividade em todos os níveis da natureza. O futuro não é dado.
O grande
historiador francês Fernand Braudel escreveu: ''Eventos são poeira". Isso
é verdade? O que é um evento? Uma analogia com ''bifurcações", estudadas
na física do não equilíbrio, surge imediatamente. Essas bifurcações aparecem em
pontos especiais nos quais a trajetória seguida por um sistema se subdivide em
ramos". Todos os ramos são possíveis, mas só um deles será seguido. No
geral não se vê apenas uma bifurcação. Elas tendem a surgir em sucessão. Isso
significa que até mesmo nas ciências fundamentais há um elemento temporal,
narrativo, e isso constitui o "fim da certeza", o título do meu
último livro. O mundo está em construção e todos podemos participar
dela.
Metáforas úteis Como escreveu Immanuel Wallerstein: ''É possível - possível,
mas não certo - criar ou construir um mundo mais humano e igualitário, melhor
ancorado no racionalismo material". Flutuações do nível microscópico
decidem que ramo emergirá em cada ponto de bifurcação, e portanto que evento
acontecerá. O apelo às ciências da complexidade não significa que estejamos
sugerindo que as ciências humanas sejam "reduzidas" à física. Nossa
empreitada não é de redução, mas de reconciliação. Conceitos introduzidos das
ciências da complexidade podem servir como metáforas muito mais úteis do que o
tradicional apelo a metáforas newtonianas.
As ciências da complexidade, assim,
conduzem a uma metáfora que pode ser aplicada à sociedade: um evento é a
aparição de uma nova estrutura social depois de uma bifurcação; flutuações São
o resultado de ações individuais.
Todo evento tem uma ''microestrutura''.
Tomemos um exemplo histórico a Revolução Russa de 1917. 0 fim do regime
czarista poderia ter tomado diferentes formas, e o ramo seguido resultou de
diversos fatores, tais como a falta de previsão do czar, a impopularidade de
sua mulher, a debilidade de Kerensky, a violência de Lênin. Foi essa
microestrutura, essa flutuação, que determinou o desfecho da crise e, assim, os
eventos que a ela se seguiram.
Desse ponto de vista, a história é uma sucessão
de bifurcações. Um exemplo fascinante de como isso transcorre é a transição da
era paleolítica para a neolítica, que aconteceu praticamente no mesmo período
em todo o mundo (esse fato é ainda mais surpreendente dada a longa duração da
era paleolítica). A transição parece ter sido uma bifurcação ligada a uma
exploração mais sistemática dos recursos minerais e vegetais. Muitos ramos
emergiram dessa bifurcação: o período neolítico chinês, com sua visão cósmica,
por exemplo, o neolítico egípcio, com sua confiança nos deuses, ou o ansioso
período neolítico do mundo pré-colombiano.
Toda bifurcação tem beneficiários e
vítimas. A transição para a era neolítica trouxe a ascensão de sociedades
hierárquicas. A divisão do trabalho implicou em desigualdade. A escravidão foi
estabelecida e continuou a existir até o século 19. Ainda que o faraó tivesse
uma pirâmide como tumba, seu povo era enterrado em valas comuns.
O século 19,
da mesma forma que o 20, apresentou uma série de bifurcações. A cada vez que
novos materiais eram descobertos - carvão, petróleo ou novas formas de energia
utilizável-, a sociedade se transformava. Será que não se poderia dizer que,
tomadas como um todo, essas bifurcações conduziram a uma maior participação da
população na cultura' e que de lá por diante as desigualdades entre as classes
sociais nascidas na era neolítica começaram a diminuir?
Homem e natureza No
geral, bifurcações são a um só tempo um sinal de instabilidade e um sinal de
vitalidade em uma dada sociedade. Elas expressam também o desejo por uma
sociedade mais justa. Mesmo fora das ciências sociais, o Ocidente preserva um
espetáculo surpreendente de bifurcações sucessivas. A música e a arte, por
exemplo, mudam a cada 50 anos. O homem continuamente explora novas
possibilidades, concebe utopias que podem conduzi-lo a uma relação mais
harmoniosa entre homem e homem e homem e natureza. E esses são temas que
ressurgem constantemente nas pesquisas de opinião sobre o caráter do século
21.
A que ponto chegamos? Estou convencido de que estamos nos aproximando de
uma bifurcação conectada ao progresso da tecnologia da informação e a tudo que
a ela se associa como a multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é
a "sociedade de rede", com seus sonhos de aldeia global.
Mas qual
será o resultado dessa bifurcação? Em qual de seus ramos nos encontraremos? A
palavra "globalização" cobre uma grande variedade de situações
diferentes? E possível que os imperadores romanos já estivessem sonhando com
globalização, uma cultura única dominando o mundo. A preservação do pluralismo
cultural e o respeito pelo outro exigirá toda a atenção das gerações futuras.
Mas há outros riscos no horizonte.
Cerca de 12 mil espécies de formigas são
conhecidas hoje. Suas colônias variam de algumas centenas a muitos milhões de
indivíduos. E interessante notar que o comportamento das formigas depende do
tamanho da colônia. Em colônias pequenas, a formiga se comporta de forma
individualista, procurando comida e a levando de volta ao ninho. Quando a
colônia é grande, porém, a situação muda e a coordenação de atividades se toma
essencial. Estruturas coletivas surgem espontaneamente, então, como resultado
de reações autocatalíticas entre formigas que produzem trocas de informação
medidas quimicamente.
Não é coincidência que nas grandes colônias de formigas
ou térmites os insetos individuais se tomem cegos. O crescimento populacional
transfere a iniciativa do indivíduo para a coletividade.
Por analogia, podemos
nos perguntar qual será o efeito da sociedade da informação sobre nossa
criatividade individual. Há vantagens óbvias nesse tipo de sociedade - basta
pensar na medicina ou na economia. Mas existe informação e desinformação. Como
diferenciá-las? Claramente, isso requer cada vez mais conhecimento e um senso
crítico desenvolvido. O verdadeiro precisa ser distinguido do falso,o possível
do impossível. O desenvolvimento da informação significa que estamos legando
uma tarefa pesada às futuras gerações. Não devemos permitir que surjam novas
divisões resultando da ''sociedade de redes" baseada na tecnologia da
informação. Mas é preciso igualmente examinar questões mais fundamentais.
Em
sentido geral será que a bifurcação reduzirá a distância entre os países ricos
e os pobres? A globalização será caracterizada pela paz e democracia ou por
violência, aberta ou disfarçada? Cabe às futuras gerações criar as flutuações
que determinarão o rumo do evento correspondente à chegada da sociedade da
informação.
Minha mensagem às futuras gerações, portanto, é de que os dados
não foram lançados e que o caminho a ser percorrido depois das bifurcação ainda
não foi escolhido. Estamos em um período de flutuação no qual as ações
individuais continuam a ser essenciais.
Quanto mais a ciência avança, mais nos
espantamos com ela. Fomos da idéia geocêntrica de um sistema solar para a
heliocêntrica, e de lá para a idéia das galáxias e, por fim, para a dos
múltiplos universos. Todos já ouviram falar do Big Bang. Para a ciência, não
existe um evento único, e isso conduziu à idéia de que múltiplos universos podem
existir. Por outro lado, o homem é até agora a única criatura viva consciente
do espantoso universo que o criou e que ele, por sua vez, pode alterar. A
condição humana consiste em aprender a lidar com essa ambiguidade. Minha
esperança é de que as gerações futuras aprendam a conviver com o espanto e com
a ambiguidade.
A cada ano, nossos químicos produzem milhares de novas
substâncias, muitas das quais derivadas de produtos naturais - um exemplo da
criatividade humana no seio da criatividade natural como um todo. Esse espanto
nos leva a respeitar os outros. Ninguém é dono da verdade absoluta, se é que
essa expressão significa alguma coisa. Acredito que Richard Tarnes esteja
certo:
''A paixão mais profunda da alma ocidental é redescobrir a unidade com
as raízes de seu ser''.
Essa paixão leva à afirmação prometéica do poder da
razão, mas a razão pode também conduzir à alienação, a uma negação daquilo que
dá valor e significado ávida. Cabe às futuras gerações construir uma nova
coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a ciência, algo que
ponha fim às profecias quanto ao ''fim da ciência'', ''fim da história" ou
quanto ao advento da ''pós-humanidade''.
Estamos apenas no começo da ciência,
e muito distantes do tempo em que se acreditava possível descrever todo o
universo em termos de algumas poucas leis fundamentais. Encontramos o complexo
e o irreversível no domínio microscópico (tal como associado às partículas
elementares), no domínio macroscópico que nos cerca e no domínio da
astrofísica. Cabe às futuras gerações construir uma nova ciência que incorpore
todos esses aspectos, porque, por enquanto, a ciência continua em sua
infância.
Da mesma forma, o fim da história poderia ser o fim das bifurcações
e a realização das visões de pesadelo de Orwell ou Huxley quanto a uma
sociedade atemporal que perdeu sua memória. Cabe às futuras gerações
manterem-se vigilantes para garantir que isso jamais aconteça. Um sinal de
esperança é o de que o interesse pela natureza e o desejo de participar da vida
cultural jamais foi maior do que hoje. Não precisamos de nenhum tipo de
pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e
alegrias, garantir que sobreviva no futuro. A tarefa é encontrar a estreita via
entre a globalização e a preservação do pluralismo cultural, entre a violência
e a política, e entre a cultura da guerra e a da razão. São responsabilidades
pesadas.
Uma carta às gerações futuras é sempre e necessariamente escrita de
uma posição de incerteza, de uma extrapolação arriscada do passado. No entanto,
continuo otimista. O papel dos pilotos britânicos foi crucial para decidir o
desfecho da Segunda Guerra Mundial. Foi, para repetir uma palavra que usei com
frequência nesse texto, uma "flutuação". Confio em que flutuações
como essa surgirão sempre, para que possamos navegar seguros entre os perigos
que hoje percebemos. É com essa nota de otimismo que eu gostaria de encerrar
minha mensagem.
Fonte: Caderno Mais!, da FSP, de 30/01/2000
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